Supermercados compram e fecham pubs no Reino Unido

Leia em 6min 20s

Segundo a Campaign for Real Ale (Camra, uma associação de defesa do direito dos consumidores), mais de 200 pubs foram convertidos em filiais de grandes redes varejistas em todo o Reino Unido desde o início de 2010.

Gigantes como Tesco e Sainsbury's estão de olho nesses pequenos bares tradicionais porque eles já têm licenças para venda varejista. Isso quer dizer que não é preciso muito trabalho nem muita burocracia para converter os pubs em unidades do tipo "express". E mais: se o lugar tiver menos de 280 m2, ele pode ficar aberto o dia inteiro nos finais de semana - a lei diz que lojas de tamanhos maiores só podem funcionar por seis horas aos domingos.

Há outros fatores que influenciam esse fenômeno. Alguns donos de pub se dispõem a vender seus pontos por causa da escalada do preço dos imóveis no Reino Unido, enquanto outros simplesmente não estão conseguindo sobreviver à concorrência com os próprios supermercados e reclamam dos altos impostos que incidem sobre a venda de bebidas.

De acordo com a British Beer and Pub Association, os impostos sobre a cerveja aumentaram 42% no país desde 2004. Nesse mesmo período, afirma a entidade, o valor das vendas aumentou só 8%.

Charlie, atendente de balcão do Queen's Arms, esboça um sorriso amarelo ao falar do assunto. Mas não há como disfarçar, a melancolia é clara no seu tom de voz: "O 'pub da esquina' [mais do que um bar, essa instituição cultural britânica] está agonizando". Como assim? Afinal, o pub em que Charlie trabalha está sempre cheio, tanto de gente jovem que estuda ali perto quanto de habitués, gente mais velha que mora no bairro e passa lá todos os dias... "Pois é, aqui somos uma exceção. Os pequenos pubs do oeste de Londres estão todos virando supermercados", completa a frase, cabisbaixo, enquanto serve um "pint" de Doom Bar, cerveja da Cornualha que tem um status meio cult no país.

É isso mesmo, o Queen's Arms pode ser considerado uma exceção. É um pequeno pub em Kensington, numa dessas charmosas vilinhas sem saída que salpicam Londres. Mas ele tem a vantagem de estar muito perto do Royal Albert Hall e do Royal College of Music. Os estudantes de música de lá incorporaram tanto o bar que costumam chamá-lo de "99" - o Royal College tem 98 salas de aula.

Sendo assim, o Queen's Arms, com suas cervejas regionais e sua comida simples, mas farta, consegue levar adiante o espírito fundador dos pubs. É um espírito que está descrito na origem do nome. Afinal, "pub" vem de "public", ou seja, um local gregário, em que qualquer um pode ir, em contraposição aos "clubs", os clubes de cavalheiros, associações privadas e elitistas que permitem a convivência apenas de sócios e convidados.

A mesma sorte para continuar a cumprir essa "função gregária" não tiveram o Ion, em North Kensington, nem o The Fox, em West Kensington, que há pouco tempo se transformaram em supermercados. Pelo mesmo caminho seguiram o Sallisbury Tavern, em Fulham, o Spinning Wheel, em West Ealing, e assim por diante. E isso apenas para falar da região oeste de Londres, onde mais de uma dúzia de pubs já desapareceu nos últimos tempos.

Segundo a Campaign for Real Ale (Camra, uma associação de defesa do direito dos consumidores), mais de 200 pubs foram convertidos em filiais de supermercados em todo o Reino Unido desde o início de 2010. Desses, a Tesco, maior rede britânica, foi responsável por transformar 130 pubs em Tesco Metro, unidades menores do supermercado voltadas para a venda local. A Sainsbury's, terceira maior rede do país, adotou a mesma estratégia e já converteu mais de 20 pubs.

É um fenômeno que tem várias facetas. Uma delas é legal. As grandes cadeias de supermercados estão de olho nos pequenos pubs porque eles já têm licenças para venda varejista - tanto faz para vender cerveja quanto para vender qualquer outra coisa. Isso quer dizer que não é preciso muito trabalho nem muita burocracia para converter os pubs em unidades do tipo "express". E mais: se o lugar tiver menos de 280 metros quadrados, ele pode ficar aberto o dia inteiro nos fins de semana - segundo uma lei de 1994, lojas de tamanhos maiores só podem funcionar seis horas nos domingos.
Cenas de alguns dos pubs da capital britânica que ainda mantêm a tradição e resistem tanto à diminuição do consumo de cerveja quanto à especulação imobiliária

"Há uma aquisição predatória dos pubs. Isso acontece por causa da legislação deficiente de uso e ocupação do solo no Reino Unido. Não é só em Londres que isso está acontecendo, é em todo o país", reclama Michael Benner, diretor-executivo da Camra.

A Tesco afirma que não é parte do problema, e sim parte da solução. Diz que compra pubs geralmente degradados e em estado de quase falência. Com isso, a substituição deles por supermercados serviria até mesmo para revitalizar a área de entorno. "Os pubs bem administrados estão indo muito bem", alegou a companhia, em um comunicado recente.

Há um outro detalhe que tem a ver com uma lei diferente, a famosa lei de mercado. Mesmo que relativamente bem administrados, alguns pubs estão sendo fechados porque os proprietários querem vender seus pontos para aproveitar a alta do mercado imobiliário do país. O preço do metro quadrado em Londres alcançou recordes sucessivos nos últimos anos.

Por causa disso tudo, apenas grandes redes de pubs têm mostrado fôlego para continuar no jogo. E, mesmo assim, sofrendo muito com a diminuição do poder de compra de seu público habitual, por causa da crise europeia, e da mudança de hábitos.

Um exemplo é a JD Wetherspoon, que opera 860 pubs no país. O chairman da empresa, Tim Martin, conta que, nos anos 70, quando ele entrou para o ramo, 90% de toda a cerveja consumida no Reino Unido eram vendidos em pubs. Hoje, diz ele, não passa de 50%.

E qual o maior motivo? Bem, aí encontramos mais uma faceta do fenômeno que vem provocando o fechamento dos pequenos pubs. Hoje em dia é muito mais barato comprar bebidas nos supermercados do que nos pubs.

Martin diz que isso se dá por causa das distorções tributárias britânicas. "Quem vai a um pub tomar cerveja paga 20% de IVA [o imposto sobre valor agregado]. Por outro lado, os supermercados têm praticamente imposto zero sobre a maior parte dos alimentos que vendem. O que eles fazem é usar esse benefício fiscal como um subsídio cruzado para sustentar as suas vendas de cervejas."

Segundo a British Beer and Pub Association (BBPA, associação empresarial do setor), os impostos sobre a cerveja aumentaram em 42% no país desde 2004. Nesse mesmo período, afirma a BBPA, o valor das vendas aumentou 8%, ou seja, "uma queda significativa em termos reais".

Michael Benner, da Camra, concorda nesse ponto: "Os impostos com que os pequenos proprietários de pubs têm de arcar são escorchantes. E isso tem provocado um grande custo social". Ele pondera que, mesmo antes do fenômeno do assédio dos supermercados, os donos de pequenos estabelecimentos já vinham fechando as portas em áreas fora dos grandes centros urbanos e até mesmo em zonas rurais, onde serviam de pontos de encontro das comunidades.

Em 2001, havia 60,7 mil pubs no Reino Unido, segundo a BBPA; hoje, há 51,1 mil.

Parece que cada vez menos deles têm a sorte de permanecer tão vibrantes quanto o Queen's Arm.



Veículo: Valor Econômico


Veja também

Chuva em excesso causa problema nas lavouras de hortaliças de SP

Em Mogi das Cruzes, muitos agricultores perderam quase toda a produção.Chuva lava as plantas e custos com ...

Veja mais
Cresce a adesão de consumidores a itens de marca própria

Comercializar produtos com a própria marca é uma tendência no varejo em geral e, cada vez mais, iten...

Veja mais
Carga tributária eleva preço do material escolar em até 47,49%

Depois dos gastos com as festas de final de ano, a temporada de férias, a quitação antecipada de im...

Veja mais
Supermercados ainda tem itens da ceia de Natal pela metade do preço

Na Baixada Santista, mercadorias estão com até 60% de desconto.Alguns aproveitam para comprar alimentos qu...

Veja mais
Produção nacional de calçados cresce 3,8% em 2013

Após dois anos consecutivos de queda, a produção nacional de calçados voltará a cresc...

Veja mais
Manobra de Abilio provoca reunião de comando da BRF

A diretoria da companhia de alimentos BRF-Brasil Foods deve se reunir ainda hoje, segunda-feira, antecipando o fim das f...

Veja mais
Doenças do trabalho oneram mais o INSS

Nos últimos três anos, a média de gastos da Previdência Social com problemas de saúde g...

Veja mais
Principal insumo, arroz sofre com oferta e vem perdendo área

Representantes da rizicultura gaúcha vêm orientando os produtores de arroz a diversificar sua lavoura e n&a...

Veja mais
Indústria Pif Paf comemora crescimento

Pif Paf processa hoje mais de 300 produtos que vão da pizza pronta congelada a cortes de aves e suínosA di...

Veja mais