Mercado nacional ganha novo fôlego com cacau de alta qualidade e chocolate fino feito no Brasil; degustação às cegas mostra que ele tem qualidades
ANA PAULA BONI
"Nós tínhamos que dançar sobre os caroços pegajosos e o mel aderia aos nossos pés. Depois, o cacau secava ao sol." A cena de "Cacau", livro de Jorge Amado de 1934, ajuda a remontar a história dessa amêndoa no Brasil, que jamais integrou chocolates de qualidade tão alta --e 100% nacionais-- como agora.
O mercado brasileiro, sempre impregnado por chocolates cheios de açúcar, ganhou no último ano ao menos oito produtos finos. Para tal definição, eles reúnem maior concentração de cacau, ingredientes (como manteiga de cacau) de alta qualidade e passam por torra e processamento de nível superior aos produtos convencionais.
Pisar o cacau para tirar-lhe a polpa, revelando a amêndoa que depois de torrada viraria chocolate, era a tradição nas fazendas baianas. Décadas mais tarde, o fruto passou a secar com a polpa.
Em 1989, quando o Brasil era o segundo maior produtor de cacau do mundo, o fungo vassoura-de-bruxa assolou o sul da Bahia e tornou as plantas menos produtivas.
Se não podiam mais lançar mão da quantidade, parte dos 32 mil cacauicultores que hoje existem na região passaram a prezar pela qualidade. Assim, no lugar de deixar os frutos secarem em barcaças, começaram a usar cochos de madeira para a fermentação: é ali que a polpa dá maior complexidade de sabores.
A variedade de espécies e híbridos do cacaueiro, criados para resistir à praga, também trouxe benefícios ao chocolate. "A gente esperava melhorar a produção, mas acabamos melhorando os sabores", diz o cacauicultor João Tavares, que reserva 70% de sua produção para o cacau de alta qualidade e que já foi premiado no tradicional Salão do Chocolate de Paris.
Desde 2012, o nome de Tavares estampa um dos quatro chocolates finos da brasileira Harald. Produtos baianos como Mendoá, Babette, Coroa Azul, Chor e o Tablete Orgânico 52% da Cacau Show, engrossam o filão de chocolates finos 100% brasileiros.
Em termos de qualidade, confeiteiros que participaram de degustação promovida pelo "Comida" acham que parte deles têm atributos para disputar o mercado mundial.
Mas a produção ainda é pequena. "O cacau fino no Brasil é só 1% da produção. Falta para comprar", diz Ernesto Neugebauer, da Harald.
O preço é outro impeditivo, diz o confeiteiro Rafael Barros. "As empresas querem cobrar no produto nacional quase a mesma coisa que o importado, que pagou 40%, 50% de taxas alfandegárias."
Tipo exportação
Governo discute aumentar de 25% para 35% o percentual de cacau no chocolate, como na Europa; paladar mais amargo não é realidade do brasileiro, dizem chefs
Se queremos promover a indústria brasileira, o produto ao menos tem de ser de qualidade, vaticina o francês radicado no Brasil Fabrice Lenud, na degustação às cegas promovida pelo "Comida" em sua confeitaria, Douce France, ao lado de Cíntia Lima, da chocolateria Chocolat Des Arts, e Rafael Barros, da doceria Opera Ganache.
Foram provadas 13 barras de seis marcas nacionais, com diferentes percentuais de cacau: Harald, Amma, Mendoá, Babette, Sagarana e Chor.
A conclusão dos participantes é que os chocolates finos brasileiros têm potencial para disputar o mercado mundial. Produtos da belga Barry-Callebaut e da francesa Valrhona com 100% cacau brasileiro, diz Fabrice, mostram que a nossa matéria-prima é boa. "Mas eles têm expertise industrial. Nos falta capacidade de refinamento, e também vai levar um tempo para mudar o paladar brasileiro. Mas é um mercado promissor e há aqui iniciativas corajosas", diz ele.
A principal característica que permeia chocolates finos como esses é a concentração de cacau, em geral acima de 40% --maior que os 25% exigidos pela lei brasileira.
Em países como a França, o percentual exigido é 35% --e é a este número que querem chegar produtores brasileiros, em projeto discutido na Câmara Setorial do Cacau, do Ministério da Agricultura.
"O maior objetivo é melhorar o produto brasileiro. O chocolate que é produzido em larga escala ainda deixa muito a desejar, tem menos cacau que os 25% exigidos", diz o cacauicultor Guilherme Moura, presidente da Câmara Setorial do Cacau. Marcas como a Nestlé, porém, não revelam quanto usam de cacau. "Queremos deixar de ser só grande produtor de matéria-prima para ser também grande produtor de chocolate."
Hoje, o Brasil é o sexto maior produtor de cacau, com 4,9%, ficando atrás de Costa do Marfim, Gana, Indonésia, Nigéria e Camarões.
A venda total de chocolate movimenta, no país, R$ 9 bilhões por ano, segundo a Abicab (associação brasileira da indústria de chocolate e cacau). Desses R$ 9 bilhões, 6% se referem ao chocolate fino.
Esse chocolate de alta qualidade é alvo de feiras como a Febrachoco, que ocorre em Gramado (RS) em setembro.
Veículo: Folha de S.Paulo